domingo, setembro 24, 2006

ad byrja ad laera íslensku - um «instantâneo sociológico»


A frase significa "a começar a aprender islandês", e nada mais é que a «minha» - “no sentido em que esta surge como o resultado sempre parcial de uma actividade construtiva do sujeito que conhece” [Franco Crespi] - narrativa acerca duma pequena (mas tão intensa) experiência fugaz - e «flâneur» - do quotidiano, assente nos mais interinos, provisórios e experimentais elementos que «motricizam» o meu singelo fôlego de intenções (proto)sociológicas.
São 20:30h (21:30h em Portugal) e entro para a primeira aula de islandês para estrangeiros (leccionada em islandês/inglês, no primeiro módulo); a primeira coisa em que reparo é na (falta de) qualidade do ar, porquanto este está de tal forma quente e húmido que suspeito de indolência no processo de hematose pulmunar levado a cabo nos meus pulmões - vestígios, com toda a certeza, de uma aula anterior, e muito próxima temporalmente, à minha. Deslizo rapidamente o olhar e constato que a pequena e única janela ao fundo da sala se encontra fechada, e os dois aquecedores existentes... ligados! - uma desproporção que rasteira a mais elementar sensação de bem estar.
Adiante: a pequena sala dispôe de dez mesas (dispostas em dois corredores muito próximos), de dois lugares cada; uma mesa no princípio da sala, cuja respectiva cadeira se encontra virada para o fundo da mesma, em que resgata simbólicamente um espaço mais privado («distância pública», segundo o conceito de proxémia de E. Hall) reservado a quem dará a lição, e um quadro, como adminículo da mesma.
Após o processo de “cortejamento” dos critérios de escolha pelos lugares disponíveis, e o de “cotejamento” dos últimos pelos primeiros, sentamo-nos, e damos início a uma fase de apresentação. Ainda a “procissão” de apresentações ia a meio e eu já me sentia absolutamente eufórico, com o mosaico de nacionalidades/proveniências (israelitas, americanos, alemães, italianos, japoneses, etíopes, lituanos, russos, portugueses, etc...) presente em tão pequeno espaço. Nisto, a «estabilidade» da situação “vacila” com a entrada de mais duas alunas; a professora “sugere” que a turma já terá gente a mais... mas, instantâneamente, antecipa-se a qualquer consideração e adianta que, naturalmente, existe espaço para todos. Eis então que o indivíduo de nacionalidade russa se precipita e, num tom manifestamente incomodado (eufemismo: ele elevou bem alto a sua voz), faz saber que, aquando da sua inscrição, lhe tinham dito que a turma não teria mais de 15 alunos – tem, com mais estas duas raparigas, 21); se as primeiras frases foram em inglês, as seguintes foram em russo. Adulterada a «atmosfera protocolar» de que nos fala Goffman, cada um dos presentes começou por se pronunciar em inglês, mantendo a reboque uma série de comentários, proferidos na sua respectiva língua mãe. Se as minhas inferências já eram difíceis ao princípio, logo se tornaram impossíveis, com as ruídosas disjunções que resvalaram para uma tremenda «cacofonia» de idiomas, que pululavam num rubato desconcertante.
No meio (ou na linha da frente) deste cenário estavam as duas raparigas, atónitas, perdidas, de faces ruborizadas.
Não me alongarei na apreciação, nomeadamente, da reacção do indisposto russo. Talvez a sua atitude tenha sido enformada por uma «racionalidade instrumental», em que “prevalecem as relações entre conhecimento e interesses de tipo egoísta” [Habermas]. O que mais me chamou a atenção foi a situação construída com as raparigas, e as suas reacções (ou falta delas) e que me catapultaram os pensamentos para outras questões: duas raparigas cabo-verdianas, «forasteiras», «estrangeiras» (como eu) à maneira Simmeliana: não são “possuidoras de terra aqui” – “entendendo-se este termo não apenas no seu sentido material, mas também no seu sentido metafórico, como substância de vida enraizada algures” [Simmel]. Confessaram-me no intervalo que se sentem perdidas na Islândia: “não percebo este povo”; “não percebo alguns comportamentos”. Pois... nem eu! Talvez mesmo porque a sua “matriz cultural” [José Machado Pais] é diferente da nossa (que também não é a mesma, neste caso) - que é “resultado de uma evolução histórica ininterrupta” e que está “presente na nossa biografia pessoal”; e que, desse modo, não pussuímos o tal “pensar habitual” deste «endogrupo»[José Machado Pais]. E talvez por isso sentimos «desajustes» e «desadaptações».
Mas, e no nosso próprio país? Será que mesmo aí o conhecimento não é isento de «tensões»? De «contradições»? De «incoerências»? Pleno de heterogeneidade? Claro que sim, sendo certo e sabido que as representações sociais diferem, visto existirem «diferenças de condição, posição e trajectória social» [Augusto Santos Silva]
Aprendendo a língua, talvez nos consigamos integrar aqui”...
Sim... de certa forma, passarem da “plateia para o cenário” [J.M.Pais]...


[continua...]


- Este pequeno retalho de percepções, reflexões e considerações integra um diário vivencial que me acompanha, e não é, de forma alguma, um qualquer tipo de versão acabada, seja do que fôr! Tanto que nem as citações se esforçam minimamente por cumprir os cânones metodológicos, nem as considerações são sequer profundas ou consistentes - talvez apenas parcamente adornadas duma, pouco "polida", e algo desarrumada, "mobília" sociológica.

3 Comments:

At segunda-feira, setembro 25, 2006 1:47:00 da manhã, Blogger MB said...

Espero que partilhes connosco mais um pouco dessas vivências. Já que existem romances históricos pq não te aventuras na escrita de um romance sociológico? ;)

 
At sexta-feira, outubro 20, 2006 10:34:00 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Mt bom este relato de uma vivência aventureira. Aprender a falar Islandês não é pra todos.

 
At sábado, dezembro 09, 2006 3:34:00 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Você soube envolver o leitor no cenário daquele acontecimento; imaginei cada detalhe e emoção da pespectiva em que vc viveu nessa primeira aula de islandês... A observação sobre o homem Russo, foi precisa ao descrever a cultura que acompanha cada um em suas ações e reações!

 

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