terça-feira, maio 20, 2008

HUNGUR VERKFALL




hungur verkfall...

A expressão é islandesa e significa «greve de fome»:

«fome» para o vocábulo «hungur»
«greve» para o vocábulo «verkfall», cujo deriva da aglutinação dos vocábulos «verk» («trabalho») e «fall» («paragem», «queda», «colapso»)

Lê-se: “hungur vérkfatl”
(...)

“Job insecurity can stem from a number of different sources”[1]

(…)

Recebo um telefonema, à hora de almoço, de um dos nossos clientes aqui na Islândia, a informar que um dos carpinteiros não compareceu ao serviço e que não notificou ninguém.
O próprio cliente pede-me para não falar já com a pessoa em questão e diz que ele próprio vai falar.
Ao fim do dia o cliente manifesta crença na reposição da rotina para o dia seguinte e concordamos na superfluidade de eu próprio ligar ao carpinteiro.

No dia seguinte recebo um telefonema do mesmo cliente, perto das 10h da manhã, a reportar que o carpinteiro em questão, pelo segundo dia consecutivo, não compareceu ao trabalho e não notificou ninguém. E que estaria em casa a fazer greve de fome!

Marco uma reunião de emergência com o cliente para me inteirar da situação:

(…)


Cliente:
- “Está tudo muito bem no trabalho! Ele é um excelente profissional!”
- “Creio que a greve de fome se deve a uma refeição que ele teve no domingo passado com todos lá em casa…”

Eu:
- “Uma refeição?! Mas, houve algum problema com a comida? Ele alegou alguma coisa??”
Cliente:
- “Não, não disse nada de especial. Apenas que tinha feito o jantar e que não gostou.”


(…)

Se a automonitorização emocional deteve o precipitar da estupefacção, a perplexidade foi incontrolável: Greve de fome devido a um jantar que ele próprio preparou?!

Terminada a reunião, ligo de imediato para o Carpinteiro:

(…)


Eu:
- “Boa tarde Sr. X (o nome é propositadamente omitido)! Está tudo bem?”

Carpinteiro:
- “Boa tarde Sr. Rui. Mais ou menos…”

Eu:
- “Mais ou menos? Então, o que se passa? Onde é que o senhor está neste momento?”

Carpinteiro:
- “Estou em casa. Não fui trabalhar. Estou doente!”

Eu:
- “Doente? Então, mas sabe o que tem? Doente com o quê? E notificou alguém previamente?”

Carpinteiro:
- “Doente porque não como!”

Eu:
- “Não come??! Mas, não come porquê?”

Carpinteiro:
- “Porque não quero!”

Eu:
- “?? Porque não quer?... Mas não quer porquê??”

Carpinteiro:
- “Porque estou a fazer greve de fome, e quero ficar doente e vocês vão ter que tratar de mim e pagar tudo!”

Eu:
- “hmmm… Sr. X, tenha calma! Eu passo já por aí para falarmos e entender o que se passa. Tenha calma e, já agora… coma qualquer coisita entretanto!”


(…)

Comunico-me com o cliente que manifesta desagrado pela situação; sublinha o dinheiro que está a perder com a ausência dele; e sugere a substituição da pessoa, caso a mesma insista na manutenção do actual procedimento.

A ideia da criação e (da permissão?) da existência de “espaços” susceptíveis a estes moldes reivindicativos, e os próprios moldes reivindicativos intrigam-me e inquietam-me, quer em termos das possíveis variáveis presentes no contexto da circunstância, quer, posteriormente, em termos de exemplo para os demais.
Enquanto me deslocava à residência onde o mesmo se encontrava, de modo a falarmos presencialmente, passei mentalmente em revista a conversa telefónica e também uma série de possibilidades e eventuais combinações:

Profissão:
A pessoa em questão é Carpinteiro de limpos, que segundo o Diário da República I SÉRIE B, Nº 245 de 22 de Outubro de 2003, pág. 7061, “é o profissional que, no domínio das técnicas e procedimentos adequados e no respeito pelas Normas de Ambiente, Higiene e Segurança e a partir de desenhos e outras especificações técnicas, executa, monta e assenta portas, janelas, caixilhos e outras estruturas em madeira ou produtos afins, utilizando ferramentas manuais e máquinas-ferramenta adequadas.”

Local de trabalho:
O local de trabalho (uma oficina de carpintaria) é, segundo o próprio Carpinteiro, “muito bom”:
“Tem todas as ferramentas e máquinas que preciso”,
“Os colegas são boa gente”,
“O patrão é boa gente. Até nos põe umas horas a mais na folha” (a maioria chama os clientes de “patrão”. Contudo, em conversas comigo, alguns, se o dizem, logo o rectificam e já utilizam “o cliente”).

Horário laboral:
O horário permitido por lei é de 40 horas semanais. 5 dias por semana.
O trabalho começa pela manhã às 7:30h.
10h – 10:20h: pausa para café;
12:30h – 14h: pausa para almoço;
16:h – 16:20h: pausa para café;
17h: fim do dia normal de trabalho;
17h – 18h: hora extra de trabalho.
Por vezes trabalha ao sábado das 7:30h às 16h. E faz mais horas extras durante a semana.

Remuneração:
Os rendimentos chegam aos € 3000 mensais.
Acomodação:
Vive numa «guesthouse» (tecnicamente preparada para 30 pessoas) com mais 20 outros portugueses.
Divide um quarto com outro carpinteiro; que é amigo dele há 40 anos e que foi quem o sugeriu para este trabalho.
A «guesthouse» é nova e todos os equipamentos são novos.
Existem televisões comuns na sala e cozinha e algumas por quartos (ele tem uma no quarto).
Existem rádios.
E routers que disponibilizam ligações ethernet e wireless à Internet.

(…)


Eu:
- Boa tarde Sr. X! O Sr. Está bem?

Carpinteiro:
- Boa tarde! Não! Estou doente!

Eu:
- “Ok. Mas sabe o que tem? De que padece?”

Carpinteiro:
- “Estou a fazer greve de fome! E não vou comer nada até ficar doente e vocês terem que me levar para o hospital!”.


(…)

Hesito por uns brevíssimos instantes antes de me pronunciar, enquanto recenseio e analiso, ávidamente, todas as palavras, trejeitos e interjeições do «espaço de vida»[2] desta pessoa.
Ele fala rápido; lacónico, mas… por mais que os gestos firmes (?) que esteiam a linguagem em que me apresenta a sua «psicologia ingénua»[3], a tentem fazer passar por consistente, o discurso parece-me… frágil e inseguro; e boleeiro de outras motivações.
Creio haver aqui não apenas «descobrimento» mas «encobrimento» também; «revelação e ocultação»[4].
Lembra-me os retratos simmelianos da sua (de Simmel) «sociologia do talvez»[5]. E, muito possivelmente, precisarei duma «mística»[6] à maneira de Certeau para conseguir compreender (acreditar?) no que ele, aparentemente, me está a tentar fazer ver e crer, pois a sua «credibilidade e fidedignidade»[7] não me convencem nos primeiros minutos.

(…)


Eu:
- Pode-se explicar, por favor? Lamento mas não o estou a conseguir compreender…”

Carpinteiro:
- Não aguento mais! Tive a gota d’água no domingo!”

Eu:
- “Sr. X, o Sr. Chegou há… uma semana apenas!”.

Carpinteiro:
- “Sim mas, nunca brincaram tanto comigo! Tenho mais de 50 anos; sou muito homem…”

Eu:
- “… Ok… pode-se explicar melhor, por favor?”.

Carpinteiro:
- “Não como mais!!”.

Eu:
- “Ok, até aí eu já percebi… Posso agora saber porquê?”.

Carpinteiro:
- “… No domingo eu não comi. E agora não como mais!”.


(…)

Estou quase a mandá-lo para a cama sem ver os bonecos animados do Pica Pau (são do seu tempo de criança, concerteza)… mas, volto a insistir:

(…)


Eu:
- Sr. X, o que é que se passou com a comida no domingo? Estava má? Mal confeccionada? Quem cozinhou?”.

Carpinteiro:
- “Fui eu que cozinhei!”.

Eu:
- “Foi você que cozinhou?!... … … … … … E… está a queixar-se duma refeição que… você próprio preparou?”.
Carpinteiro:
- Sim, eu cozinhei mas, era suposto dar para todos. Alguém comeu dois bocados de peixe e eu fiquei sem nenhum quando fui para comer.”.


(…)

Como é que eu interpreto isto? Não me parece de todo razoável o que ele me está a transmitir? Para mim não tem que ser, aliás, eu estou “do outro lado”; do lado que tem o «skeptron». Será que, e porque já tenho inclusive a «formatação» da empresa que represento, até já só o interpreto nunca perdendo esse «skeptron» de vista? E (por isso) sob um efeito «Rosenthal»?
De qualquer forma, e aparte de Jorge Correia Jesuíno alegar que «as [boas] relações constituem o factor mais importante na influência (…)»[8], a abordagem consensual, por uma série de razões pessoais, sociais e profissionais, é sempre uma prioridade de «justiça destributiva»[9].
Porque ele se expressa com uma raiva (?) contida? - Averill referiu-se à raiva «como uma emoção conflituosa que está biologicamente relacionada com os sistemas agressivos e a convivência social, o simbolismo e a consciência de si mesmo. Psicologicamente destina-se à correcção dum erro percebido, e, socioculturalmente, a melhorar os padrões de comportamento geralmente aceites»[10].
Será que não existe mais para além do erro de alguém ter comido a porção de peixe que lhe era destinada, e que despoletou (?) esta… birra?

(…)


Eu:
- Sr. X, você está a querer transmitir-me que, pelo menos até ter que ser assistido num hospital, ficará sem ingerir alimentos?...”

Carpinteiro:
- “Sim! Como retaliação!”.

Eu:
- “Retaliação?... Sr. X, só se for contra si próprio! O directo e imediato atingido, pelo menos, no que a nível de desgaste físico, psicológico e de saúde concerne, é você!... Já pensou nisso?”.

[SILÊNCIO]

Carpinteiro:
- “Quero ir para casa! Quero ir para Portugal! Altere-me a viagem!”


(…)

Retirei-me após lhe pedir para reconsiderar tudo até ao dia seguinte, mas, não sem antes ele me referir, convictamente, que outro carpinteiro ganhava mais do que ele, e que deveria ter um quarto exclusivo.
O trabalhador em questão decidiu viajar de regresso a Portugal.
O trabalhador em questão alegou, aos restantes que estavam na casa e assim que se dirigiu aos escritórios em Portugal, que não aceitava a «injustiça de receber por mês menos dinheiro» que outro carpinteiro que com ele trabalhava e que com esta empresa, temporariamente, trabalha há, pelo menos, 6 anos.

Em baixo são apresentadas algumas fotos, respectivamente, das acomodações e da oficina:







Peço desculpa pela desarrumada e "franzina" exposição factual e sociológica contudo o tempo escasseia.
E aguardo todos os comentários que possam tecer. De forma a que possa (possamos) manter tais considerações em profícua dialogia - e, de modo a que eu não seja também, de facto, absorvido por parte do «mundo objecto» em análise.


[1] Hazel Conley, “A State of Insecurity: Temporary Work in the Public Services” In Work, Employment and Society, London, vol. 16(4), 2002, pág. 725.
[2] Kurt Lewin Cit In Giovanni Gocci, Laura Occhini, Introdução à Psicologia Social Moderna, Lisboa, Edições 70, 1995, pág. 88.
[3] Fritz Heider Cit In Giovanni Gocci, Laura Occhini, Introdução à Psicologia Social Moderna, Lisboa, Edições 70, 1995, pág. 79.
[4] José Machado Pais, Sociologia da Vida Quotidiana, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais: Teorias, Métodos e Estudos de Caso, 2002, pág. 29.
[5] Idem, Ibidem, pág. 29.
[6] Michel de Certeau, Michael B. Smith, The Mystic Fable: The Sixteenth and Seventeenth Century, Chicago, University Chicago Press, 1995.
[7] C.I. Hovland, W. Mandell, E.H. Campbell, T. Brock, A.S. Luchins, A.R. Cohen, W.J. McGuire, I.L. Janis, R.L. Feierabend and N.H. Anderson, The order of Presentation in Persuation, New Haven, Yale University Press, 1959, pág. 33.
[8] Jorge Correia Jesuíno, Processos de Liderança, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, pág. 99.
[9] G. C. Homans Cit In. Giovanni Gocci, Laura Occhini, Op.Cit. pág. 61.
[10] Avrill Cit. In. Kenneth T. Strongman, A Psicologia da Emoção, Lisboa, Climepsi Editores, 1998, págs. 144 e 145.